Apresenta um conjunto de intervenções em diversos locais da cidade, estando previstas exposições coletivas e apresentações individuais de artistas nacionais e internacionais.
Era uma vez uma serpente infinita. como era infinita não havia maneira de se saber onde estava a sua cabeça. de cada vez que se lhe tirava uma vértebra não fazia falta nenhuma. podia-se mesmo parti-la deslocá-la emendá-la. ficava sempre infinita. quem quisesse levar-lhe um bocado para casa podia pô-lo na parede e contemplar um fragmento da serpente infinita.
Ana Hatherly[1]
[1] Ana Hatherly, 351 Tisanas (Lisboa: Quimera, 1997), pp. 44–45.
A partir de uma leitura especulativa de A Lecture on Serpent Ritual, texto que tem por base a conferência proferida por Aby Warburg em 1923 no hospital de Kreuzlingen (na altura, casualmente intitulado Imagens da Região dos Índios Pueblo da América do Norte), a atual edição da Bienal de Fotografia BF24 pretende exercitar uma abordagem multimodal e plural de conceitos como metamorfose, transmutação, magia, ritual, pele, maquilhagem, camuflagem, superfície ou dobra, observando as «imagens que mudam de pele». O fluxo entre as imagens, fixas ou/e moventes, devedor de um gesto anacrónico, potencia um atlas serpenteante onde as «ninfas» atravessam os tempos históricos e a contemporaneidade.
Estabelecendo um horizonte dialogante com a edição de 2022, o Programa Curatorial, intitulado SERPENTE INFINITA, apresenta um conjunto de intervenções em diversos locais da Vila, estando previstas exposições coletivas e apresentações individuais de artistas nacionais e internacionais, assim como uma residência artística e editorial na Fábrica das Palavras com a editora Sr.Teste, do seio da qual resultará uma publicação que incluirá a primeira tradução em língua portuguesa deste texto primeiramente publicado em 1938, acompanhado de uma «nova iconografia da serpente», a partir da consulta de todo o acervo da Biblioteca.
Criando zonas de contacto e de diálogo e examinando as relações entre a fotografia e a videoarte, a literatura, a performance, o cinema e o desenho, as exposições-ações são percebidas como cosmologias cruzadas de universos autorais que operam no campo aberto da fotografia.
«Mesmo que estejam em mundos separados, ambos — altar e atlas — configuram tentativas dirigidas (Versuchsanordnungen) de representar, por meio de objetos individuais específicos, as maiores ligações “energéticas” entre as forças que controlam o mundo.»
Na observação do fotográfico como uma possibilidade de formação de subjetividades oscilantes, de geração de processos de hibridização das imagens em trânsito, seguimos a análise que Philippe-Alain Michaud faz do projeto Atlas Mnemosyne (1924–1929), examinado as dinâmicas de produção do movimento e daquilo a que poderíamos chamar cinematografia essencial.
A figura da serpente — da escultura de Laocoonte à cerimónia dos índios hopi — parece encarnar essas linhas (raios) que atravessam transtemporalmente mitologias individuais e coletivas e que se manifestam, de quando em vez, em quadros mais ou menos percetíveis.
Warburg não terá assistido ao ritual da serpente entre 1895 e 1896, quando da sua visita às tribos ameríndias no Novo México e no Arizona, tendo a sua palestra sido precisamente uma operação entre documento, empirismo e ficção.
Ora, as imagens não são uma mera propriedade ou manifestação material de um qualquer medium, ou técnica (tecnologia); elas são, acima de tudo, uma operação ou um conjunto de operações: relações porosas entre o visível e o invisível, o dizível e o indizível, o documento e a ficção, numa sinuosa teia de re-significações e infusões, dissemelhança, deslocamento e desfasamento.
Ao destacar a relevância contínua do pensamento warburguiano no contexto da arte contemporânea, e especialmente da fotografia, procura-se explorar a interseção entre o simbolismo ritualístico e o pensamento contemporâneo sobre o fotográfico, conectando narrativas universais e particularizadas de transformação e renovação.
Mudanças de pele, portanto.
Quando Goethe descreve a sua experiência percetiva diante do grupo escultórico Laocconte, esta aproxima-se daquela que Warburg referia relativamente às figuras de Botticelli, num mesmo efeito, ou estímulo, flicker, um pestanejar que produz movimento a partir de algo aparentemente estático: (…) coloquemo-nos diante do grupo com os olhos fechados e à distância necessária; vamos abrilos e fechá-los alternadamente e veremos todo o mármore em movimento; teremos medo de
descobrir que o grupo mudou quando abrirmos novamente os olhos. Eu diria prontamente que, como o grupo está agora exposto, é um relâmpago fixo, uma onda petrificada no momento em que se aproxima da costa. Vemos o mesmo efeito quando vemos o grupo à noite, à luz dos archotes. Warburg parece apresentar a serpente como figura ou representação do movimento, dos movimentos: das linhas, dos tempos, do cosmos, do pathos, das águas das chuvas, das colheitas, da ecdise (na muda da pele, das superfícies, dos corpos), das imagens que entram uma pelas outras.
Pensamos, a partir deste recorte concetual, a exposição enquanto ritual, uma sequência de pequenas cerimónias alumiadas por «archotes» (flambeaux), num plano quase não eletrificado, (aliás, Warburg acusava a tecnologia de retirar o mistério ao mundo, de lhe omitir o enigma que se esconde no escuro), num jogo aberto de aparições, de revelações a cada flash ou relâmpago, oscilando entre o foscado da noite, a tempestade e o início claro do dia. Enquadramos, ainda, o fenómeno da phantasmagoria (finais do século XVIII), explorando o papel da sombra e da luz na revelação e na criação de espaço como uma transição entre o tangível e a ficção, o que significa equacionar os aspetos mais básicos da perceção, da cognição e também do movimento, de novo.
SERPENTE INFINITA organiza-se em dois momentos distintos, mas comunicantes: as exposições na Fábrica das Palavras, na Galeria Paulo Nunes, no Núcleo Museológico Mártir Santo, assim como as intervenções na fachada do Museu do Neo-Realismo, inauguram em novembro de 2024, ao passo que a exposição coletiva no Celeiro da Patriarcal inaugura a fevereiro de 2025. Todas as exposições podem ser visitadas até 23 de março de 2025.
/ Fábrica das Palavras
30 de novembro de 2024 a 23 de março de 2025
/ Galeria Paulo Nunes – Arte Contemporânea
30 de novembro de 2024 a 23 de março de 2025
/ Museu do Neo-Realismo
30 de novembro de 2024 a 23 de março de 2025
/ Museu Municipal de Vila Franca de Xira
30 de novembro de 2024 a 23 de março de 2025
/ Núcleo Museológico do Mártir Santo
30 de novembro de 2024 a 23 de março de 2025
/ Celeiro da Patriarcal
15 de fevereiro a 23 de março de 2025
Será ainda exibido, no contexto da exposição no Celeiro da Patriarcal, Danse Serpentine II (1897–1899), filme realizado por operador desconhecido, atribuído à Société Lumière, em parceria com o Institut Lumière.
Numa colaboração com a Umbigo Magazine, será publicado na edição da revista de Dezembro de 2024 um ensaio visual e escrito, extensão do projeto curatorial SERPENTE INFINITA.
No contexto do ciclo expositivo será desenvolvido um programa de mediação com a participação de várias entidades e instituições e serão organizados seminários sobre Imagem com convidados de áreas do saber diversas, visitas temáticas com a participação da curadora e convidados e workshops com a colaboração de investigadores e artistas.
Setor de Ação Cultural da Câmara Municipal
de Vila Franca de Xira
Rua Alves Redol, n.º45
2600-099 Vila Franca de Xira
Email: bienalfotografiavfx@cm-vfxira.pt
Tel.: +351 263 285 626